“A trajetória de João Pedro de Carvalho Neto é curiosa. Nascido em Ipaumirim (CE), em 1964, é um dos oito filhos de pai romeiro, pernambucano de Belo Jardim, e de mãe afilhada do Padre Cicero. A família migrou para Juazeiro do Norte, em busca de melhorias de vidas o trabalho passou a se apresentar como a única saída. (...) João Pedro decidiu enveredar pela xilogravura ao ver a animação em torno da ‘Lira Nordestina’, a gráfica de cordel fundada, na década de 1920, pelo romeiro alagoano José Bernardo da Silva (1901-1970)”.
Gilmar de Carvalho
João Pedro do Juazeiro e do Mundo, especial para a revista Cariri, maio de 2019.
Máquina Tipográfica
Álbum Tipografia
Xilogravura, 2020
João Pedro do Juazeiro e do Mundo ou a Ceia Larga de Gilmar de Carvalho
Na noite de autógrafos do seu livro-tese “Madeira Matriz”, Gilmar de Carvalho celebrava também um rito de passagem na vida de João Pedro. A abertura da exposição individual era, leio Gilmar no texto de apresentação, “uma cerimônia de iniciação no mundo da xilogravura a cujo rol de intérpretes” João Pedro passava, “oficialmente”, a fazer parte. O lugar: a sede, em Fortaleza, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Quando: junho de 1999.
Ano da mudança de João Pedro para Fortaleza. Os caminhos dos dois haviam se cruzado em Juazeiro do Norte. E para lá voltamos ao visitar a casa-ateliê do artista no Centro de Fortaleza, com o produtor Diego Parente, o fotógrafo Guilherme Silva e o videomaker Rodrigo Gadelha, da equipe do Cineteatro São Luiz, que realiza uma programação dedicada ao mestre de tantas vidas que foi Gilmar. Pela primeira vez, ouvi João Pedro falar de cada visita do professor à Lira Nordestina como uma ceia larga.
Dias depois, li João Pedro acendendo a própria memória como, ao revés, se apaga a luz da sala de cinema para começar a projeção. A cena é para ser riscada na madeira: Gilmar sentava à grande mesa, de 4m x 80cm, a variar de tamanho de um relato a outro. Sentava-se na lateral, bem ao centro, com xilogravadores de um lado e outro. Arguto na escuta, acolhedor na partilha, dava-se a comunhão. Gilmar oferecendo esperança, fé e trabalho.
O que conhecemos hoje da xilogravura contemporânea de Juazeiro do Norte resulta não apenas da investigação, estudo, registro e documentação do pesquisador. Gilmar é co-inventor do acervo que, com suas sucessivas encomendas, volta a verdejar e florescer, feito olho d ́ água desaparecido que brota com o replantio da flora.
João Pedro é um homem que sabe contar como nasceu. E rende graças ao criador, como podemos ver. “Ourives do Tempo” traz a série iniciada, logo depois de sua bruta morte, sobre o múltiplo e multiplicador Gilmar. Ele com Patativa nos lembra que o nome Lira Nordestina foi dado pelo poeta de Assaré. “Iluminuras Sertanejas” é como Gilmar tantas vezes se refere à poesia visual das xilos. Estão aí o milagre-marco de Juazeiro, 1889 (a hóstia transformada em sangue quando a Beata Maria de Araújo recebia a comunhão), o arraial do bem viver de Antônio Conselheiro, as chuvas, a fartura.
“Madeira Matriz” mostra parte da feitura da xilo e chama a atenção para o uso das cores, aprendizado iniciado com o pernambucano J. Borges. “Oferendas ao Tempo” encerra e abre um novo ciclo. O tempo mítico é cíclico e as divindades dançam a criação. João Pedro diz que Gilmar é senhor do tempo. Estava à mesa com eles, todos pensando no presente, e o professor feito profeta a vislumbrar futuros para cada um.
Bendito encontro. O artista incorpora Juazeiro ao nome. E Gilmar lhe dá o sobrenome que vibra em cada criatura: do Mundo. Sim, um ourives de seres humanos, como João Pedro escreveu em uma madrugada. Bonitíssimo destino para um mestre de si como foi Gilmar, o sulco mais incisivo que se pode fazer no desenho da própria vida.
Izabel Gurgel, curadora da exposição
GILMAR
POR JOÃO PEDRO
“Eu sou uma cria do Gilmar. A minha produção doravante será dedicada a ele.”
João Pedro
GILMAR DE CARVALHO GRAVADO POR JOÃO PEDRO DO JUAZEIRO
Capa de álbum de mesmo nome
Xilogravura, 2021
TRADUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO
“Uma utilização mais constante da xilogravura no Ceará remonta à segunda metade deste século [o século 20] e se liga ao incremento da editoração popular na região do Cariri.
Esta técnica milenar chinesa encontrou na ponta da faca sertaneja, no canivete de cortar fumo e rolo e até nas hastes de guarda-chuvas uma perfeita adequação e tradução de todo um imaginário nordestino de princesas, monstros e mitos como Lampião e Padre Cícero.”
Gilmar de Carvalho
A marca popular da xilogravura publicitária, Revista Fragmentos n. 3, Fortaleza, 1992. Reproduzido no livro Doze escritos na madeira, Museu do Ceará, Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001
GILMAR DE CARVALHO
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
DR. GILMAR DE CARVALHO
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Xilogravura, 2021
GILMAR DE CARVALHO
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
GILMAR DE CARVALHO
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
PROFESSOR GILMAR
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
ESCRITA NA MADEIRA
“A xilogravura chegou ao Cariri cearense na esteira das artes gráficas. Os pequenos jornais resultantes da interiorização dos prelos necessitavam, além da linguagem inflamada e dos serviços que prestavam, de recursos de sedução, para se tornarem atraentes.
A maquinaria que chegava aos núcleos interioranos era obsoleta para os grandes centros e as cercaduras, vinhetas e alguns clichês de metal que vinham com as caixas de tipos, não davam conta da ilustração da matéria editorial. Na maioria das vezes, os próprios cabeçalhos recorriam à habilidade da mão de obra local para a escavação das matrizes de umburana.
Depois a xilo se atrelou, indissoluvelmente, ao cordel. A partir da atividade do alagoano José Bernardo da Silva, mascate que acrescentou folhetos ao rol das mercadorias que vendia nas feiras e festas religiosas. A acolhida foi tanta que ele passou a editar. E como os clichês de metal demoravam mais de uma semana para ficarem prontos em Recife ou Fortaleza, ele passou a encomendar as capas aos santeiros e escultores da região.
Quando o folheto começou a decair, os gravadores tiveram que buscar novos nichos. Foi quando se consolidou a tendência da xilogravura desatrelada da encomenda e do exíguo formato da capa de cordel. É o que prevalece hoje, quando ela busca inserção no mercado de arte e se legitima ao fazer parte do acervo dos museus, das coleções particulares e a ser exibida pelas galerias.”
Gilmar de Carvalho
Texto para a mostra Universo Cariri, com curadoria de Dodora Guimarães no Centro Cultural do Abolição, Fortaleza, 1997
PROFESSOR GILMAR
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
OLHO D'ÁGUA
“O Cariri cearense é um território mágico, espécie de oásis em meio à secura da caatinga. Anfiteatro protegido pela Chapada do Araripe, de onde brotam veios d´água que irrigam canaviais.
Terra prometida que atrai a diáspora nordestina. Encruzilhada de referenciais da cultural que se sobrepõem ou se juntam, como na feitura de um mosaico ou se tecem na trama da rede de dormir.
A figura mítica, catalisadora, é Padre Cícero (...).
Uma juazeiro do Norte que faz das táboas da umburana - árvore sagrada – a matriz para o corte e a impressão de sua vida e a reinvenção do mundo por meio da arte. Matriz de signos e de sonhos gravados pelas mãos vigorosas e calejadas de seus artistas, intérpretes e porta-vozes de um povo para quem viver é uma conquista.”
Gilmar de Carvalho
Texto de apresentação para Cariri – Mostra de xilogravuras de Juazeiro do Norte, com curadoria de Gilmar de Carvalho. Exposição coletiva em homenagem aos 100 anos do Mestre Noza, na Casa da Xilogravura, Campos do Jordão, São Paulo, 1997
GILMAR E PATATIVA DO ASSARÉ
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
GILMAR E AS RABECAS
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz, 2021
GILMAR NA MORADA CELESTIAL
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Xilogravura, 2021
GILMAR NO SERTÃO
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Xilogravura, 2021
O PATRONO DA CULTURA POPULAR
Álbum Gilmar de Carvalho gravado por João Pedro do Juazeiro
Matriz e Xilogravura, 2021
No taco de umburana o artista grava os sonhos, os ídolos e os medos da gente. É a matriz popular.
A partir daí serão tiradas cópias. O que era único se reproduz e se torna acessível a muitos.
Gilmar de Carvalho
Texto de apresentação da coletiva de xilogravuras Matriz Popular, com curadoria de Gilmar de Carvalho. Espaço Cultural Teleceará, Fortaleza, 1993.
ILUMINURAS
SERTANEJAS
“A umburana é uma árvore raquítica, que insiste em nascer em meio aos lajedos, como uma metáfora da determinação e da resistência nordestinas.
Mãos habilidosas e criativas recriam o imaginário sertanejo, em folhas de papel. Esse material vai ser transferido para a madeira, por meio do carbono ou de riscos de grafite.
Pronto o desenho, começa o corte. É preciso muita perícia para empunhar o canivete, o estilete, o bisturi ou qualquer instrumento cortante, improvisado pelo artista.
O desafio é criar, outra vez, agora por meio das texturas, das nuances e sombreados. O gravador tem consciência de que seu trabalho é gráfico e antecipa resultados na escavação da matriz. E corta às avessas, como nos processo fotográfico.
Com talhes, incisões e relevos, a figura começa a se destacar do fundo.
É quando todo o imaginário nordestino de princesas e dragões, beatos e cangaceiros, valentia e fé começa a se esboçar na madeira matriz.
A madeira é, pacientemente entintada. A folha branca de papel espera, ansiosa, pelo instante em que será pressionada, como um carimbo, num ato de força e de amor.”
Cariri – Catálogo da Mostra de xilogravuras de Juazeiro do Norte, exposição coletiva em homenagem aos 100 anos do Mestre Noza), na Casa da Xilogravura, Campos do Jordão, São Paulo, 1997
BEATA MARIA DE ARAÚJO SENDO INTERROGADA
Álbum Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo – Maria de Araújo
Xilogravura, 2001
TENTAÇÕES À BEATA
Álbum Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo – Maria de Araújo
Xilogravura, 2001
SEGUIDORES DE CONSELHEIRO
Álbum Antônio Conselheiro
Xilogravura, 2018
A GUERRA
Álbum Antônio Conselheiro
Xilogravura, 2018
PRIMEIRAS CHUVAS
Álbum Horas do Sertão – Centenário de nascimento de Patativa do Assaré
Xilogravura, 2009
FARTURA
Álbum Sertão
Xilogravura, 2016
MUDANÇA
Álbum Sertão
Xilogravura, 2016
CAVALHEIRO
Álbum Sertão
Xilogravura, 2016
ROÇA DE MILHO
Álbum Roçado
Xilogravura, 2001
MADEIRA MATRIZ
“Diante do que eu tenho em mente, eu pego esse taco de madeira e vou me tornar um cirurgião, vou fazer ressurgir os seres que estão adormecidos ali. Primeiro eu escavo, depois eu pinto com tinta gráfica e então boto no papel para imprimir. A impressão pode ser na prensa ou na mão, friccionando uma colherzinha nas costas do papel”.
João Pedro em depoimento a Gilmar de Carvalho
O VÔO DOS PERUS
Matriz, 2001
SÃO SEBASTIÃO
Matriz, 2020
SÃO SEBASTIÃO SOCORRIDO PELOS ANJOS
Matriz, 2020
SÃO SEBASTIÃO É LEVADO AO CÉU PELOS ANJOS
Matriz, 2020
OFERENDAS AO TEMPO
“João Pedro conseguiu se impor por conta do trabalho vigoroso. Ele tem essa capacidade de chegar, como quem não quer nada, ficar ali, “curubijando”, o melhor modelo dos estereótipos que cristalizamos do índios, até ganhar nossa confiança e nossa afetividade.
A afro-descendência dele é forte e é expressa pelo maracatu, folguedo que ele brinca, com orgulho e ginga (já fez uma série e cartões postais com essa temática).
Nunca deixou – nunca deixará de ser – o devoto do Padre Cícero, mas, por via das dúvidas, não tem nada contra os orixás, tendo assinado uma série que foi exposta na Galeria Antônio Bandeira, da Prefeitura de Fortaleza.”
João Pedro do Juazeiro e do Mundo, especial para a revista Cariri, maio de 2019.