ATRÁS DA EMPANADA
memórias virtuais sobre o teatro de bonecos no Ceará
por grupo ânima
A propósito do estar
atrás da empanada
Tatiane Sousa - Atriz, bonequeira, poeta, encenadora, educadora e produtora
Atrás da Empanda é um estado que nos propusemos estar, Cleomir e Eu. Não apenas atuando e animando, como dizemos, botando boneco, mais sobretudo, buscando olhar para esse lugar social e humano, que perpassa a trajetória desse fazer bonequeiro, que nos inquietava.
Atravessar. Compor caminhos. Propor cruzamentos. Perceber as fronteiras e alargá-las, até fundirem-se. Cortar sincronicamente o tempo. Ir em direção a. Essa foi a energia motriz que nos guiou pelos mais de 150 km, traçando roteiros na memória da cidade, desenhado com os pedais um mapa titeriteiro. Sentíamos, a partir de nossa própria vivência, que a voz do bonequeiro latejava por ocupar as ruas. Propusemos recortes visuais, tendo motes que provocavam conversas, silêncios e narrativas, às vezes pontilhadas, às vezes num fôlego só.
A memória é uma rachadura na parede do espaço-tempo, fomos percebendo a cada visita. Então, varríamos a areia sem pressa, para olharmos através da fenda que aos poucos se abria. Em tempos que a parada para um alô ou um aceno distante são os contatos possíveis, um cafezinho de três horas seguidas é uma potente re-existência humana. Instantes construídos em um espaço-tempo paralelo, no qual as horas espiavam de longe, enquanto acenávamos que não queríamos ser incomodados.
A tecnologia foi uma grande aliada possibilitando perceber os silêncios entre uma fala e outra, o vazio de uma lembrança escondida, o brilho de um olhar que acordou um sentimento. Fotos, áudios, vídeos, perenizaram instantes, em que a palavra, indutora de sentimentos, como um clarão alumiou a caverna onde guardavam-se as memórias.
Imagens infinitas em infatigáveis espelhos postos um após-o-outro. Diálogos contínuos nos levaram até nossa própria memória acessada a partir das memórias de outros. Reconhecimento, pertencimento e diversidade. Entre o que se vê, um abismo a um passo da mão, no qual se divisaram sujeitos e seres, na hora mais pública do dia, a hora do estar junto.
É no entre que está a imagem mais nítida. Nessa contemplação, o piado da coruja trazia o presságio de que a alteridade, como uma concha, só abre na temperança. Essa ideia ganha corpo a cada dia. E atrás da empanada é um lugar em que a mais humana das condições emerge do rio, em que não se pode banhar por uma segunda vez.
O mesmo rio sedimenta memórias nas margens que se opõem. Processos de criação, pesquisas estéticas peculiares, emergiam nas palavras pescadas de memórias que se edificavam. Lançávamos a rede e o multiverso acrescentando palavras, sugestionava que há lugares pouco visitados, em que o discurso cambaleante seleciona o que pode ser dito. Centelhas na direção de uma e outra episódica, que se revelavam.
Desnudavam-se o bonequeiro, assim como a sua mística relação com o boneco. Na profundeza de sua entrega, de sua escuta ampliada, percebemos a vibração que emana da matéria convidando o homem a retornar ao elementar. O boneco chama o bonequeiro para desenganchar seus fios, nos fazendo entender que “também somos manipulados por eles”.
De frente com os bonequeiros, por trás da empanada
Henrique Dídimo - Curador
A arte de botar boneco, como se diz aqui no Ceará, faz parte de nossa tradição popular. Mas vai bem além, está na nossa formação cultural. O humor, a linguagem direta, a forma de narrar e interagir, constitui parte de nossa cearensidade, nossa singularidade como povo. Nossas referências simbólicas, nossa forma de ser e agir, estão todas ali. A brincadeira de bonecos é a TV popular, onde se fala do dia-a-dia mas também dos temas espinhosos de forma bem humorada. Não é à toa que o boneco se adequou tão bem à telinha no contexto urbano.
São muitas as formas de brincar, muitos os tipos de bonecos, de manipulações, assim como os temas e assuntos narrados podem variar bastante, desde o entretenimento infantil até a crítica política. Alguns investem mais na poesia, outros na fantasia, nas tradições populares, uns são bem mais minimalistas e não usam palavras, outros são desbocados, cheios de prosa e musicalidade.
O boneco mostra sua cara mas esconde os artistas que o manipulam. Esses ficam sempre ocultos por trás da empanada, aquela estrutura que se monta como palco. Talvez, por isso, através do boneco, se tenha tanta liberdade para falar: o boneco é como uma máscara para o ator.
Os pesquisadores Cleomir Alencar e Tatiane Sousa são eles próprios artistas bonequeiros, do grupo Ânima. Mas se propuseram a ir além do que a brincadeira proporciona. Em sua pesquisa, eles quiseram levantar o véu, descobrir o que há por trás da empanada, por trás do palco dos bonecos. É uma atitude de reflexão, de desvelar o que não se vê, um pensamento crítico sobre a brincadeira.
O ator bonequeiro está sempre escondido, mas há muita história para ser contada. Nessa pesquisa, Cleomir e Tatiane buscaram os artistas bonequeiros em suas casas, em seus locais de trabalho, em seus ateliers. Através uma cartografia afetiva pela cidade de Fortaleza e sua zona metropolitana, catalogaram dez bonequeiros e bonequeiras, percorrendo um total de 150 quilômetros, sempre em suas bicicletas! Esses encontros propiciaram boas entrevistas gravadas em vídeo e uma série de fotografias que se tornou o produto final do projeto, sob a forma de cartões-postais. São imagens que falam sobre a relação dos criadores com suas criaturas, a forma de trabalho, as técnicas usadas e toda a inventividade desses artistas que raramente são vistos, pois brincam ocultos atrás da empanada!
SOBRE O PROCESSO DA PESQUISA MESMO, AS ENTREVISTAS E A RIQUEZA DAS CONVERSAS
Tatiane Sousa - Atriz, bonequeira, poeta, encenadora, educadora e produtora
A pesquisa, desde começo, se propunha a ouvir o bonequeiro, espiar para dentro da empanada e construir um olhar sobre o botar boneco. No percurso de mais de 150 km pedalando, fomos percebendo que ela ganhava a cada visita, os contornos da alteridade, pois a partir das memórias de todos os bonequeiros, fomos olhando para nossa própria trajetória. Foram momentos de muito reconhecimento, em que imergimos num espaço-tempo paralelo, em que as horas corriam e a gente e nem via. E íamos para casa pedalando inebriados com histórias e mais histórias, que falavam de uma cidade feita de boneco.
augusto bonequeiro
“Um dia casualmente, eu tava sentado, isso foi na Casa de Bonecos. Ele sentado assim, e eu sentado olhando pra ele. Aí eu digo: rapaz, o que é que eu vou fazer contigo? E aí eu comecei a mexer com ele, virei a cabeça dele pra mim. E aí eu digo: será que dá pra conversar com ele assim? Comecei a experimentar conversar com ele assim.”
- Augusto Bonequeiro